12 de outubro de 2010

Na Noite Terrível

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

3 de janeiro de 2010

Happy New Year

Num tempo de crescentes formas de comunicação, redes sociais, blog's, hi-5's, telefones, o que dizer quando ao fim de 28 anos não se consegue vislumbrar qualquer vestígio de se ter existido para o mundo? Quando as datas passam imperceptíveis a todos e se impõe a realidade de que, se não totalmente transparentes, memoráveis não fomos de certeza, nem tão pouco recordados, o que pode ser dito? Virar a página? Escrever um novo livro? Começar de novo...? Como? Com quem?
O tempo prova-se escasso para as relações sociais que já existem, estando estas precariamente equilibradas por falta de manutenção. Quem, nestas condições sociais adversas dispõe de tempo e/ou vontade para criar novas, ainda mais quando estas se podem provar exigentes e desgastantes?
O tempo perdoa pouco, as pessoas ainda menos.
O isolamento do indíviduo que está só tende a crescer exponencialmente com cada dia que passa. A consciência disso leva ao desespero pessoal que serve de desculpa a todos que já esqueceram o medo que em tempos sentiram de estarem sós.
Como melhorar algo que não existe?
Tenho saudades de ser...
Fui?
Não sei.
Gostaria de ser.
Um novo ser, quem não fui, quem não soube ser.